Música

‘Coraline’, de Neil Gaiman, ganha versão para ópera

A ideia de transformar em ópera a perturbadora história de uma menina que vai parar em um macabro universo paralelo foi um grande desafio para o compositor Mark-Anthony Turnage.

Por: Andrew Dickson, The New York Times via ESTADÃO

LONDRES – Na sala onde se realizavam os ensaios, superaquecida, empoeirada, perto da Ponte de Londres, as coisas estavam ficando macabras. Na maquete dos cenários, uma soprano com uma máscara com botões pretos sobre os olhos batia a uma porta com uma mão falsa, tentando fazer como se tivesse sido cortada. Dois “consultores mágicos” analisavam a miniatura de um teatrinho de brinquedo, discutindo sobre o tipo de camundongos falsos que poderiam ser mais apavorantes. Misteriosos acordes flutuavam no ar vindo de outra sala: um trio ensaiava, cantando algo como “você está condenada”.

Era a quarta semana de ensaios da adaptação para o Royal Opera House do gótico infantil “Coraline“, de Neil Gaiman, e nenhuma surpresa sobrenatural deveria ser deixada ao acaso. Os sete cantores haviam memorizado a partitura enxuta e complexa de Mark-Anthony Turnage e ensaiado as marcações. Hoje, todas as preocupações se concentravam em garantir que as transformações sobrenaturais contidas no libreto de Rory Mullarkey acontecessem nos lugares assinalados.

A ópera, cujas performances se encerram no dia 7 de abril, apresentava uma série de problemas, lamentava a diretora, Aletta Collins: antes, ela nunca precisara ensaiar como jogar alguém através de um espelho no palco, como acontece no clímax da ação, e muito menos como recrutar uma orquestra de camundongos. “Estamos procurando fazer o máximo”, disse.

Nos 16 anos desde a sua publicação, “Coraline“, um conto sobre uma garota valente que cai em um universo paralelo e combate as forças do mau, conquistou inúmeros fãs e vendeu mais de 1 milhão de exemplares. Em 2009, foram feitos uma versão cinematográfica, um jogo de videogame, adaptações para histórias em quadrinhos e, inclusive, um musical Off Broadway. Entusiasmado por tudo isso e pelo impressionante sucesso de outras histórias, como a série “Sandman” e “American Gods”, Gaiman tornou-se uma espécie de figura cult não apenas entre o público do evento Comic-Con, a convenção do gênero de quadrinhos, cinema de animação etc., mas também nos círculos literários tradicionais.

Mesmo assim, a ideia de transformar um conto fantasia em uma ópera de vanguarda parecia um salto considerável. Por outro lado, Turnage sempre teve gostos ecléticos: sua última ópera, que estreou há sete anos, fala da vida rebelde e da morte por overdose de drogas da “coelhinha” Anna Nicole Smith, e suas obras orquestrais e instrumentais contêm felizes referências a Miles Davis, aos quadros de Francis Bacon e a “Single Ladies”, de Beyoncé.

 Imagem: O compositor Mark-Anthony Turnage, da Royal Opera House, escreveu uma partitura complexa para  ‘Coraline’. Foto: Tom Jamieson para The New York Times.

Embora Gaiman não esteja diretamente envolvido nesta direção, Turnage e Mullarkey tiveram muito trabalho. A história começa quando a pequena Coraline Jones descobre que uma porta murada no apartamento para o qual a família acabou de se mudar é um portal para um “outro mundo” de pesadelo. Presa atrás da porta, ela encontra uma figura com botões pretos no lugar dos olhos, que diz ser sua “outra mãe” e promete à menina tudo o que ela desejar, desde que ela concorde em ficar “para todo o sempre”. A viagem de Coraline de volta para a casa dos pais verdadeiros não é apenas a história de seu amadurecimento, é também uma busca mística.

Heroína determinada, Coraline é mais do que um paralelo com heroínas de óperas como Leonore, em “Fidelio” de Beethoven, ou Rosina, de “O Barbeiro de Sevilha”. O papel foi compartilhado nas novas produções pelas sopranos Mary Bevan e Robyn Allegra Parton.

“Ela é um personagem muito forte”, explicou Turnage. “É poderosa; ela resolve essas coisas. Tenho uma filha de 7 anos que é jovem demais para ler um livro, mas viu o filme e ficou encantada com Coraline”.

O conto visita alguns lugares autenticamente perturbadores. A sensação de que o mal espreita em cada canto é palpável; no enredo, há ainda pesadas sugestões de abuso por figuras do tipo paterno que subornam uma criança a fim de serem amadas por ela. Embora os críticos frequentemente tenham comparado o livro a “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, o universo de Gaiman é seguramente mais próximo do de David Lynch e Stephen King em sua atmosfera sobrenatural, do horror que está por trás.

“Queria escrever sobre pessoas que se preocupam com o interesse do espectador, mas nem sempre lhe dedicam a atenção que você gostaria”, disse Gaiman.

Embora “Coraline” esteja sendo trabalhada há quatro anos, Turnage e Collins afirmaram que o tema da jovem que se defende sozinha apesar de suas condições de inferioridade adquiriu forte atualidade no contexto dos movimentos #MeToo e #TimesUp. No mundo clássico, há muitos boatos de assédio sexual e também de demissões de pessoas de grande destaque.

Turnage disse que, embora algumas coisas tenham melhorado ao longo dos anos: “Tenho uma profunda consciência das mulheres que trabalham no mundo da ópera  e do quanto são marginalizadas, e como isto é difícil. Todo mundo sabe disso”.

Ele espera que “Coraline” aponte um caminho, à sua maneira. Turnage inspirou-se em uma citação de G.K. Chesterton que Gaiman usa como epígrafe do livro – “Os contos de fada são mais do que verdadeiros: não porque dizem que os dragões existem, mas porque dizem que os dragões podem ser derrotados”.

Imagem: O compositor Mark-Anthony Turnage, da Royal Opera House, escreveu uma partitura complexa para  ‘Coraline’. Foto: Tom Jamieson para The New York Times.

Mais em: Estadão Internacional e The New York Times

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